As última semanas não foram nada fáceis. Repletas de notícias inacreditáveis, não só para as vítimas das inúmeras violências e agressões sofridas, mas para toda uma sociedade que se diz desconstruída e livre de preconceitos e hábitos patriarcais que um dia, infelizmente, já foram vistos como exemplo de conduta e valores.
Mas será que fazemos mesmo parte de uma época mais evoluída, capaz de cortar as relações com esse passado criminoso e sombrio?
Começamos com a notícia sobre uma criança de 10 anos que foi violentada inúmeras vezes. Primeiro, estuprada. Depois, uma gravidez indesejada decorrente do crime do qual foi vítima. Até aí já temos conteúdo traumático o suficiente para ferir para o resto da vida qualquer adulto maduro e bem resolvido, concorda? Quanto mais uma criança. Mas não para por aí.
Ao descobrir a gravidez, com 22 semanas, a mãe da criança, respaldada na lei brasileira, leva a vítima para realizar um aborto. Aí vem a terceira agressão: é negado o acesso ao aborto legal à menina, então forçada a seguir com a gravidez em seu corpo infantil, justamente pelos profissionais de saúde que deveriam servir de cuidado e proteção.
A mãe e a criança são forçadas a acionar a justiça para ter acesso a um direito que, por lei, dispensa a necessidade de autorização judiciária para ser cumprido. São tantas macro e micro violências, por ação e omissão, sofridas por elas que já não se pode mais seguir contando numericamente qual é a seguinte (quarta? quinta? décima?). E aí vem a próxima, tão grave, pode-se dizer, quanto a que originou todo essa sequência infeliz de acontecimentos: a juíza, cuja função é garantir o acesso dos cidadãos aos direitos a que fazem jus, resolve repetidamente violentar a criança em audiência, obrigando-a a responder questionamentos sobre seu desejo de “ver o bebê nascer”, de dar um nome ao feto, dizendo o quanto ele irá sofrer e agonizar se submetido ao aborto legal. Levantando hipóteses sobre a “responsabilidade” de uma criança indefesa, vítima de um crime que faria qualquer adulto tremer nas bases, enquanto ela própria – adulta, no que deveria ser o exercício de sua função de serviço público – faz, deliberadamente, a vítima sofrer e agonizar.
E, infelizmente, as agressões dessa adulta que, em sua função, representa o próprio Estado e nossa sociedade, não param por aí. Não satisfeita, determina a separação da vítima e criança de sua mãe, ao colocá-la em um abrigo, ação que inicialmente seria determinada para separá-la do perigo iminente ao suspeitar que o abuso ocorreu dentro de sua casa, mas que, pelas palavras da própria “justiça”, agora mantinha-se para impedir que a mãe da vítima garantisse acesso de sua filha ao seu direito ao aborto.
Desnecessário seguir com a descrição detalhada dos próximos eventos, basta dizer que, após o julgamento ser publicado pela mídia e a violência constante sofrida pela criança ser explanada para todo um país, a indignação e a pressão social de toda uma população (será que de fato então nos separamos dos nossos antepassados?) fez com que a “justiça”, coincidentemente (contém ironia), voltasse a funcionar, garantindo que a criança tivesse acesso ao aborto legal. Mas, claro, não antes de somar aos primeiros traumas dessa infeliz história outros inúmeros, agravados, ainda, por serem cometidos por aqueles que deveriam ser as fontes de acolhimento e conforto da vítima.
Poucos dias depois, fomos surpreendidas por uma notícia que aconteceu com outra menina, agora nos seus 21 anos, mas que muito se assemelha com a que acabamos de descrever. Essa jovem, que possuí uma “vida pública”, também foi estuprada e também engravidou como decorrência da violência sofrida. E, assim como na história acima mencionada, as agressões sofridas pela vítima não pararam por aí.
A jovem, que não teve sintomas de gravidez, como cessação dos sangramentos mensais e aumento relevante do tamanho da barriga, apenas descobriu a gravidez em um estágio já avançado. Quando foi ao médico fazer ultrassom, contou que havia sido vítima de estupro, o que de nada serviu para que o “profissional” agisse com a postura ética mínima esperada e, tal situação, fazendo a menina ouvir, contra a sua vontade, o batimento do feto e dizendo que a vítima era obrigada a ama-lo, subtendo-a ainda a mais uma agressão.
A atriz, então, decide seguir com a gravidez e, em plena consciência de que não estaria apta a fornecer ao futuro bebê condições mínimas psicológicas e emocionais para educá-lo, decide, respaldada na lei, entregá-lo à adoção (processo esse que, diga-se de passagem, requer muita resiliência para ser concluído de forma regular, como foi feito pela vítima, que seguiu as intermináveis burocracias para garantir seu tramite legal).
Logo após o trabalho de parto, ainda sob efeito de anestesia continuou sofrendo violências da equipe médica cuja obrigação ética, profissional e legal era protegê-la: foi abordada por uma enfermeira que ameaçou vazar sua história para colunas de fofocas, quebrando, além da ética, profissionalismo ou qualquer noção de bom senso, seu dever legal de sigilo.
E não deu outra: aparentemente embasado no mesmo código de conduta que todos os demais “profissionais” aqui citados (contém ironia), um dos maiores colunistas de fofoca do país decidiu ser de bom tom publicar a história, ferindo o íntimo da vítima mais uma vez.
De novo, a reação da população à história vazada, em sua maioria, foi de apoio e solidariedade à vítima, mas, claro, apenas depois que a própria foi obrigada a expor seu íntimo para “justificar” suas escolhas a milhões de estranhos. Já a coluna de fofocas deixou de publicar um mero detalhe da história (contém ironia): o estupro que originou todos os eventos seguintes. Antes da vítima ser forçada a se pronunciar, por estar sofrendo milhares de ataques na internet, foi acusada por estranhos que baseiam suas opiniões em, literalmente, fofoca, de ter cometido crime de abandono de vulneráveis, mesmo tendo seguido todos os trâmites legais e regulatórios em seu processo de adoção.
Além de todo descaso, ataques e traições proferidos pelos “confiáveis” médicos e juristas dessas histórias, o que choca é a evidente motivação por trás de todo esse show de horrores: muito longe de ter em mente o bem estar dos fetos e bebês gerados pelas agressões sofridas pelas vítimas, como alegam, é o julgamento “moral” contra elas, em realidade, a grande satisfação daqueles que parecem se esforçar para garantir que as violências sigam proferidas.
Na história da criança estuprada aos 10 anos e grávida aos 11, o discurso acusatório era contrário ao aborto, sugerindo que a solução moral seria levar adiante a gestação no corpo infantil da vítima e “salvar” o bebê que nasceria, entregando-o para a adoção. Já no caso da atriz de 21 anos, que decidiu por entregar o bebê para adoção, o mesmo tipo de discurso moralista não hesitou ao acusá-la de crime de abandono. Fica claro que a motivação, nesses casos (e em tantos outros não públicos), é a culpabilização das vítimas que, via de regra, são mulheres. Não há conduta tomada, nesses casos, que as façam escapar dos julgamentos de uma sociedade extremamente hipócrita e moralista. Mesmo se as violências não houvessem res ultado em gravidez, não obrigando a vítima a tomar decisões traumáticas e difíceis, seja qual forem, a sociedade estaria pronta para apontar o dedo, questionando qual foi o papel da vítima em todo o caso (“foi ela que atiçou o agressor?”, “que roupa ela estava usando?”, “onde ela estava andando?”, “bebeu?”) e, claro, sem deixar de duvidar de sua palavra até o último segundo. Não é de se espantar que a maioria das mulheres decidem não denunciar seus agressores, afinal, serão elas quem estarão expostas ao escrutínio da sociedade mas, isso, claro, não antes de serem acusadas de mentirosas.
A verdade é que o estupro no Brasil é algo extremamente comum. No ano de 2021, nosso país contabilizou um estupro a cada dez minutos. Nesse mesmo ano, 17 mil meninas com menos de 14 anos deram à luz. Dados revoltantes, e ainda mais chocantemente, subnotificados, já que retratam apenas os casos que chegaram a ser denunciados às autoridades, ou seja, a minoria.
Por isso, faça barulho, se pronuncie em casos como esses. Exija do poder público a segurança e acolhimento que é de direito do cidadão. Não se cale em casos como esse, se manifeste. Seja um stories no Instagram, uma conversa com amigos e familiares. As leis são criadas com base na opinião pública, no que é manifestado socialmente. Sua voz é importante sim e se calar em situações como essa abre o caminho para que acontecam novamente.
IMPORTANTE LEMBRAR: Do ponto de vista legal, é permitido interromper a gestação, segundo o Código Penal, em casos de estupro, risco de vida para a pessoa gestante e fetos anencéfalos, sem definir o tempo máximo de gestação para realização do aborto.